quarta-feira, 3 de junho de 2009

A vida na aldeia de Verdelhos

Os meus avós são pessoas do campo. Fui, por isso, entrevistar a minha avó materna, a propósito deste trabalho. Ela mora nos Verdelhos, uma aldeia nas redondezas da Sertã.

O que é que se ouvia falar de política cá na aldeia, na época de Salazar?

Nada. Quem mandava eram os pais, os homens, e em cada casa não se falava nesses assuntos. Cá na aldeia, ninguém tinha televisão e só nas casas dos ricos é que havia uma telefonia, mas, como a luz eléctrica só chegou cá em 1970, as pilhas também não duravam muito.

Falemos da vida na aldeia, como era a vossa alimentação?

Havia muita fome nas casas com muitos filhos. O meu pai tinha muito milho, por isso, tinha pão sempre, mas não havia condutos (só azeitonas e um quarteirão de sardinhas por semana). Tínhamos animais (ovelhas, porcos, galinhas e coelhos), mas só se matava uma galinha ou um coelho, em dia de festa. Os ovos e as galinhas ou coelhos que houvesse levavam-se ao mercado para vender e com esse dinheiro comprava-se alguma roupa ou calçado e arroz, açúcar e massa. Durante o tempo da guerra, os homens iam à Sertã, à Casa do Povo ou onde distribuíam as senhas que cada um tinha direito do racionamento da mercearia. Os mais necessitados, muitas vezes, ainda as vendiam a outros. Havia muita candonga de bacalhau, arroz e açúcar. O porco matava-se uma vez por ano e era ao sustento do ano todo. Salgavam-se as carnes melhores e das outras fazia-se o chouriço, que depois de seco ia para os potes de azeite para se governar o ano todo. Em regra, fazia-se uma panela de sopa com um bocado de unto e comia-se pão com azeitonas.
O trabalho do campo era muito duro. Almoçava-se logo de manhã, pelas 9 horas, e jantava-se à uma. Da sacha até à vindima, tínhamos direito à merenda (pão, chouriço, queijo, sardinha, etc.) e à noite ceávamos com sopa. Carne, só em dias de festa é que se matava alguma rês. Mesmo nas casas ricas da aldeia, comia-se assim. Por exemplo, um quartinho de frango dava para três, para o almoço, e ainda se guardava para o farnel do dia seguinte. Nas casas pobres, nem pratos havia, punha-se o comer num alguidar e sentavam-se todos em volta, cada um com seu garfo e só se serviam quando chegasse a sua vez. As condições eram más e nas casas com muitos filhos nem dormiam em casa, iam dormir para o palheiro e aqueciam-se na palha, que foi o que aconteceu com o teu avô.


A avó foi à escola?


1- A minha tia-avó professora, numa escola dos arredores de Oleiros.

Não. No meu tempo, a escola era obrigatória só para os rapazes, porque as mulheres que soubessem ler só tinham maus vícios. A escola também era longe da aldeia e tinha de se ir à Sertã fazer o exame da passagem de classe. E o exame da quarta só se fazia em Tomar. Demoravam-se dois dias de caminho e era preciso ter uma besta (uma mula, um burro ou um cavalo).
A minha irmã, dez anos mais nova, já foi à escola e fez o exame da admissão. Mais tarde, foi professora regente. Casou por correspondência e foi para Moçambique viver para o “mato”. Tinham melhores condições, toda a gente tinha um “preto” para lhes fazer as lidas da casa e ajudar nas culturas. Chegavam ao ponto de, quando queriam castigar os filhos e dar uma palmada, o “preto” resguardava o menino e oferecia-se para apanhar por ele.
Eu fui guardar gado por conta do meu avô, aos 7 anos. Tinha cama, mesa e educação. Em tudo, era o meu avô que mandava.



2- Casamento da minha tia-avó, por correspondência, dado que o noivo não estava presente. À esquerda, a minha avó. Foto de 1963.

Mas também havia divertimentos?
Sim, aos domingos íamos à missa e, quando vínhamos, mudávamos a roupa e os animais tinham que comer. Às vezes, aparecia cá um tocador de concertina e faziam-se uns bailaricos, mas era preciso pedir ordem aos pais, para ir e para dançar. No Verão, havia sempre muitas romarias, mas muitas vezes os pais iam, mas não deixavam ir os filhos, porque, como era a época de calor, tinha de se regar e deitar água aos animais. As romarias mais importantes eram as da Senhora dos Remédios e da Senhora da Confiança. Como ficam a mais ou menos 12 km, íamos a pé, na véspera, dormíamos ao relento e voltávamos depois da procissão do dia. Era preciso levar farnel. Nalgumas casas, a miséria era tanta que os pais se escondiam dos filhos para comerem o galo (era tradição). Eu era costureira e faziam-se os fatos para estrear na festa da terra. Os pais não autorizavam mangas acima do cotovelo, nem decotes abaixo do pescoço (osso do esterno). As saias, já se sabe, abaixo do joelho.


3- Romaria da aldeia. Família toda reunida.

Como é que faziam para ir ao médico?

Não íamos. Faziam-se umas mezinhas e, quando as coisas ficavam piores, chamava-se o “barbeiro do Amioso”. Havia muitas fraquezas (a tuberculose) mas esses iam para as casas de saúde, para longe, e não se sabia nada deles, nem tinham visitas durante anos e muitas vezes morriam. Também aqui não havia estradas, ia tudo a pé à Vila. Só íamos às feiras de ano (Feira de Janeiro, Feira de S. Marcos, Feira de S. Pedro e Feira de S. Neutel). Quando morria alguém, ia na carreta, não havia carro funerário, pelas veredas dos cabeços até à Sertã.

Então, mas não havia transportes?

Havia. A carreira era da empresa Libânio Serra de Cernache de Bonjardim e já fazia a linha de Pedrógão Pequeno, mas não havia dinheiro para o bilhete e então fazíamos um dos caminhos a pé, em geral, para lá e, quando voltávamos, ficávamos a 5km de casa.
Lembro-me de que, quando se deu o 25 de Abril, eu fui à Sertã nesse dia e estava tudo muito esquisito. As pessoas diziam para irmos para casa, que era perigoso, que não se sabia o que tinha acontecido, mas que a telefonia só passava aquelas músicas (Grândola, Vila Morena). Havia muito medo. Depois, as pessoas ficaram ainda mais descontentes, pois empresas como a das camionetas do Sr. Libânio foram-lhe “roubadas” pelo Estado, foram nacionalizadas – Rodoviária Nacional.

Emigravam muitas pessoas cá da terra? E para onde iam?

Bem, daqui foi muita gente da época do meu pai para o Brasil. Chamávamos-lhes os brasileiros, porque ou regressavam cheios de dinheiros ou mandavam dinheiro às famílias que faziam as casas grandes (gente rica). Tinham muita lavoura e muitos criados. O teu avô era criado de uma dessas casas dos brasileiros que havia no Venestal. Dormia no palheiro e comia na cozinha, depois dos senhores, a comida mais reles: papas de milho e as carnes gordas. Depois o Brasil deixou de dar e muitos foram para África, como os teus tios. Só que, quando a guerra civil rebentou no Ultramar, depois do 25 de Abril de 1974, muitos tiveram que fugir sem nada.

Rui Pedro Nunes Capinha